quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

“O TEMPO EM SANTO AGOSTINHO E PASCAL”

“O TEMPO EM SANTO AGOSTINHO E PASCAL”
Luiz Henrique de Araújo*.

Santo Agostinho no Capítulo XI da sua obra Confissões, faz uma análise acerca do tempo, ressaltando o seu aspecto psicológico, ou seja, a maneira como nós o apreendemos, a noção do antes e do depois que as coisas gravam em nossa alma.
Segundo ele, o tempo tem início no ato criador de Deus, ou seja, quando o mundo começou a ser, a existir. No ato de falar de Deus fomos criados. Podemos comprovar isso no livro do Gênesis.
Somente quando o tempo está decorrendo é que posso percebê-lo e medí-lo, pois não se pode medir o tempo passado que já não existe ou mesmo o futuro que ainda não chegou.
Ao invés de afirmar: passado, presente e futuro, Santo Agostinho nos diz que a maneira correta de afirmar isso é: a lembrança das coisas passadas, a visão presente das coisas presentes e a esperança das coisas futuras.
O tempo para Santo Agostinho não é outra coisa senão uma distensão da alma, ou seja, é a existência do eu no tempo.
O tempo é tempo porque passa, pois senão passasse já não seria tempo, mas sim eternidade.
Se para Santo Agostinho o tempo é a distensão da alma, ou seja, é a existência do eu no tempo, pode-se perceber que o “Conheça-te a ti mesmo” socrático está presente em sua filosofia. O homem precisa voltar para o interior de si para conhecer a si mesmo. Nesta volta, ele colhe a si mesmo como um ser que, para ser ou existir, necessita do Ser Imutável (eterno), ou seja, Deus. Ora, se o homem conhece a si, sabe que sua existência depende de um ser eternamente existente, uma vez que a existência humana não pode ser causada pelo próprio homem. No interior de si e diante “Daquele que É”, ou seja, de Deus que habita o seu ser mais profundo, o homem colhe a si: diante “Daquele que É” colhe-se a si como um eu sou. Nesse instante do tempo nada antecede nem sucede o Eu. Desse modo, colhendo a si mesmo como um “eu sou” (existo), experimenta os vestígios da eternidade, pois colhe a sua existência no agora.
Portanto, no instante em que eu capto que sou (esse instante sem espaço), eu experimento a eternidade, pois somente Deus é, ele é “Aquele que É”. Este agora é vestígio da eternidade.
O tempo presente, este modo de tempo em que o homem capta a si mesmo como um eu sou, este não pode ser medido. Logo, esse tempo não pode ser medida do movimento, tal como sustenta Aristóteles, pois, posto não haver nada que suceda ao eu não há movimento algum.
Assim, pode-se sustentar que o tempo
[1] presente para Santo Agostinho é vestígio da eternidade, pois o presente é atual.
Em Pascal temos dois conceitos que nos ajudam entender a sua antropologia, são eles: o Tédio e o Divertimento.
O homem antes da queda adâmica tinha uma relação amorosa com Deus, contemplava Deus face a face. Após a queda, o homem querendo igualar-se a Deus rompe esta relação amorosa.
A partir disso, surge no homem um vazio, vazio este que ele irá durante sua vida buscar preencher com muitas coisas e com um amor desmedido a si próprio.
Este amor desmedido, Pascal chama de orgulho. O orgulho faz com que o homem transforme seu amor a Deus para um amor desmedido a si mesmo.
Perdendo seu verdadeiro objeto de amor, ou seja, Deus, o homem acaba não encontrando nada que o satisfaça. Porém, o homem conserva dentro de si à vontade de conhecer e de ser feliz. Na própria alma humana há uma capacidade infinita de amar devido o seu primeiro estado, estado anterior a queda onde o homem contemplava Deus.
Portanto, para Pascal o tédio é esse retorno para si, para o interior do homem, onde ao voltar para o seu interior, este lhe mostrará suas misérias, ou seja, aquilo que ele realmente é. Dessa forma, o eu pascaliano é insuportável ao homem. Sendo este eu humano insuportável ao homem, pois ele nunca poderá estar em repouso, ele quer tudo possuir e dominar para preencher este grande vazio que se instaura em seu interior.
Para fugir do Tédio o homem cria eus imaginários. Este, sempre está se apresentando com as suas qualidades para assim se passar como se fosse um deus, sendo admirado por todos. Pois senão se apresentar com as suas qualidades não será amado e assim não estará na estima alheia, logo, cairá no tédio, visto que sua felicidade depende da estima alheia, pois o mais belo lugar do mundo para o homem pascaliano é estar na idéia do outro. É a admiração do outro que faz com que o homem esteja feliz.
Com o eu imaginário o homem trabalha incessantemente para que sua imagem esteja sempre na idéia do outro e para que a mesma não se apague. Dessa forma, o eu acaba sendo escravo da sua própria imagem.
Desse modo, pode-se perceber que o eu imaginário, subterfúgio que o homem usa para não ver o que realmente é, não quer observar e assumir suas misérias, fraquezas e imperfeições. Com isso, distante de Deus este homem nunca cessará de cair e sempre trará dentro de si a necessidade de divertir-se, pois esta é a condição necessária para fugir do tédio. Em seu interior e em seu exterior haverá uma inconstância enorme, ou seja, um momento estará no tédio e em outro no divertimento.
O presente nunca satisfazendo o homem, faz com que o mesmo fuja deste, pois se ficar neste, cairá no tédio e este é insuportável ao homem.
O divertimento, por sua vez, é uma forma privilegiada do homem desviar o olhar de si mesmo. O homem pascaliano, portanto, é aquele que se diverte, teme e se assombra com a pequena duração de sua vida e do seu pequeno lugar no espaço em comparação com a eternidade.
Segundo Pascal, é somente através do divertimento que o homem é consolado de suas misérias, porém para ele o divertimento é a maior miséria do homem, visto que no divertimento o homem deixa de considerar aquilo que ele realmente é.
É somente com o divertimento que o homem tem alegria ilusória. O homem pascaliano recusa o presente, o agora e espera viver, ser feliz em um tempo futuro. O presente e o passado são meios que ele utiliza para ser feliz num tempo futuro.
Santo Agostinho e Pascal: Aproximações.
Para Santo Agostinho, somente quando o homem capta que é (que existe), neste tempo que flui e o leva ao nada, ou seja, a morte, ele experimenta o próprio ser divino, a eternidade. Colhendo-se no agora que é vestígio da eternidade, descobrindo-se como um “eu sou”, o homem vive o seu presente experimentando a eternidade.
Já em Pascal, o homem nunca está satisfeito com o presente. Sempre está lembrando do passado e pensando no futuro, fugindo assim do presente que para ele é insuportável.
Pascal se utiliza do divertimento para fugir do presente (do agora) e se lançar no futuro, visto que este homem não suporta um repouso (tédio) e devido a isso quer estar a todo instante no divertimento, visto que esse é mais prazeroso para ele.
Em Pascal aparece o que chamamos o tempo da graça. É com o auxílio da graça divina que o homem sai do seu estado concupiscente, desse modo, é somente a graça que torna o homem verdadeiramente virtuoso. Pois a graça faz com que o homem possa se lançar na caridade. A caridade não é nada mais do que a antecipação da eternidade, uma vez que só a caridade começa nesta vida e continua na outra. Portanto, para Pascal, o homem necessita da caridade para viver o presente, pois esta faz com que o mesmo já possa experimentar ainda neste mundo a antecipação da eternidade.
Também Santo Agostinho acentua a necessidade da caridade. Para ele, a caridade é viver segundo a graça divina, ou seja, ser embebido da vida divina. Dessa forma, estando na graça o homem ama o próprio amor e, portanto, também antecipa a eternidade.
Enquanto a caridade (graça divina) faz com que o homem antecipe a eternidade nesta vida, para Santo Agostinho o homem experimenta esta mesma eternidade da seguinte maneira: no retorno a si e na ascensão do seu interior a Deus, descobrindo-se como um “eu sou” e com a graça divina: a caridade é já a vivência do que será a eternidade neste mundo de escoamento constante.

[1] Como afirma Santo Agostinho: “O tempo não é apenas uma sucessão de instantes separados. É um contínuo, e, como tal, é indivisível. O tempo, para ser estudado na sua metafísica não se deve dividir no “antes” e “depois”, mas considerar-se na sua síntese de continuidade. (N. do T.).” (SANTO AGOSTINHO, 1980, p. 220)


*Luiz Henrique de Araújo - Graduando em Filosofia pela Faculdade João Paulo II.
Resumo do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado durante o I Seminário de Produção Científica da FAJOPA.


quinta-feira, 29 de novembro de 2007

O drama da existência humana em Tomás e Aquino




Henrique Ferreira Albuquerque*




A filosofia cristã é a expressão mais adequada da filosofia medieval, porque o espírito desta é um espírito cristão. É ela quem penetra a tradição grega, trabalha-a por dentro e produz uma óptica cristã das coisas. A filosofia orienta-se por uma inédita luz: a da Revelação.
A Revelação exerceu influência decisiva sobre a metafísica, nela introduzindo a identificação entre Deus e o ser.

Nesse caminho empreendido por Tomás, percorremos sua noção de ser, oriunda da relevante revelação do nome divino. É dela que sairá toda a metafísica tomasiana. Tratamos do que se pode atribuir a Deus, que é criador do mundo. E dentro desse mundo causado por ele, atentamos nossa pesquisa no drama da existência do homem, que tem seu ser recebido de outro que não ele: de Deus. Abordamos o abismo do nada, predador do ser criado. O homem, dotado de vontade, se inclina ao Ser supremo que o causou, mas também ao nada do qual proveio. Esse homem é salvo do nada pelo Ser supremo, antes que a ele retorne. Este Ser é quem lhe dá a existência.
Muito mais que trabalhar por dentro as metafísicas anteriores, Tomás compõe a sua própria. Ainda que não se pense o ser, ele é. Aquilo que é, se é, é ser. A filosofia de Tomás de Aquino se desenvolve a partir de sua noção de ser, que lhe é muito própria, tendo sido elaborada por ele mesmo. Esta noção é aplicada a Deus: ele é o ser. O conceito tomasiano de ser foi preparado na história da filosofia pelo árabe Avicena, sustentando que “a existência é um complemento da substância que, por não estar incluso na essência, lhe sobrevém, por assim dizer, como acidente” (GILSON, 1962, p. 23).
Há um Deus e ele é o ser. Isto corresponde à pedra angular da filosofia cristã, posta por Moisés.
Platão e Aristóteles estavam no caminho do ser. A filosofia cristã prosseguiu no mesmo caminho, isto é, continuou o que pensaram e só levou o pensamento grego à perfeição porque este era verdadeiro.
O ser é importante para os seres, que nada mudam no ser. A criatura, em sua existência e substancialidade, é um análogo do criador, por não ser o ser, mas participar dele. Toda participação supõe que o que participa seja e não seja aquilo de que participa.
Deus cria a partir do nada. O que é criado não é feito por movimento ou mudança. Se fosse por movimento ou mudança, seria a partir de matéria pré-existente, em outras palavras, seria uma formação da matéria que já havia.
O ser só pode ser dado à criatura por aquele que é o ser em si. “[...] Deus produz as coisas em seu ser a partir do nada” (TOMÁS DE AQUINO, 1ª parte, q. 45, art. 2, resp., 2001, p.49). As coisas são criadas do interior do ser divino a partir do nada, de maneira que tudo que é criado resguarda vestígio divino e, simultaneamente, resquício do nada, ou seja, há um misto de ser e não-ser em tudo que Deus produziu.
É necessário algo que conserve os seres, dando-lhes a existência. Quem cumpre esse papel é Deus que, sendo o ser, o único que o é, pode dar existência a outros seres. Tudo o que não é Deus só dele pode receber sua existência, pois causar o ser é próprio somente do ser.
Este universo criado se abisma incessantemente para o nada por si mesmo. Só é salvo a cada instante do não-ser pelo dom permanente de um ser, que ele não pode nem se dar nem conservar. Nada é, se faz ou faz sem que sua existência lhe venha do ser. O risco de se lançar ao nada é algo em que incorre toda criatura. E o homem tem consciência desse risco que corre.
A existência do homem traz em si mesma uma dramaticidade, pois o homem recebe seu ser de outro e isto o vulnera ao não-ser. Para tanto, tratamos do que é o ser humano, em sua ontologia, e das propensões a que ele está sujeito, em função de sua mesma ontologia.
O homem tomasiano é uma criatura, que sai das mãos do Ser criador e dele recebe seu ser.
O homem não dá a si sua existência. Se ele é por outro, não pode ter outra causa primeira senão o que é por si mesmo: Deus. O fato de seu ser advir de outro que não ele mesmo implicará no drama da existência do homem, uma vez que ele, por não ser o Ser, estará suscetível ao nada.
Enquanto Sócrates recebe do oráculo de Delfos a revelação “conhece-te a ti mesmo”, para a filosofia cristã o homem é revelado como imagem e semelhança de Deus (GILSON, 2006). A imagem divina não é apenas aquilo em que o homem se parece com Deus: é o movimento da alma, usando de sua similitude, em direção a Deus.
O homem cristão guarda semelhança e dessemelhança em relação a Deus. Semelhança, por ser um ente e dele ter recebido seu ser. Dessemelhança, por ser um ente participante, diferentemente de Deus que é o ente em si. Ele é, portanto, uma imagem disforme de Deus. Tal deformidade será a causa de o homem ser propenso ao não-ser. Sem a condução divina, as coisas voltariam ao nada do qual vieram.
Deus cria a partir do nada, pois criação é emanação de um ente a partir do não-ente, que é o nada. (TOMÁS DE AQUINO, 1ª parte, q. 45, art. 1, resp., 2003). Ele mantém a criação, antes que esta volte ao nada. Assim, temos que o Criador extrai a criatura do nada e não deixa o nada lhe penetrar, impossibilitando que volte ao não-ser.
Criando as coisas do nada, Deus dá-lhes o seu próprio ser de forma participada. As coisas criadas são algo, isto é, têm o ser por participação em Deus, que é o Ser. A existência é doação divina, recebida pelas criaturas. Portanto, não lhes pertence: o ser das criaturas é outro e, por conseguinte, o ser do homem também. Por não ser o Ser, mas dele participar, o homem pode abismar-se no nada, isto é, corromper-se.
O mal decorre da inevitável limitação que a criatura comporta em si. Existe uma distância entre Deus e ela. Quando a perfeição divina se estende à criatura, passa necessariamente de forma participada. Daí a possibilidade do mal. O mal, evidentemente, é uma privação e sua noção só tem sentido se a relacionarmos a noções positivas: é um ser de razão.
As corrupções, a que tende a criatura, advêm da mutabilidade, porque as criaturas estão sujeitas ao não-ser. Em outras palavras, podem voltar a não existir, tal qual não existiam antes. Está inscrita na essência da criatura a mutabilidade, de modo coessencial. O fato de ser criada é marca disto, pois poderia não ter sido criada. Se as criaturas são algo e vieram do nada, e se o nada é diferente do ser, então há mutabilidade nas criaturas, pois não eram nada e agora são algo. Esta mutabilidade vulnera o ser ao não-ser.
Por sua aptidão a não ser, a criatura tende ao nada. Sua contingência radical a coloca constantemente no perigo de retornar ao vazio do qual veio. Do não-ser veio e por ele é sugada implacavelmente a cada instante. A inclinação ao nada é característica intrínseca e inerente do ser criado, precisamente pelo fato de ele existir como criação. Assim, seu existir como criatura é responsável por propender ao nada.
Só não propende ao nada o que não veio dele, ou seja, Deus. Ele, sendo ato puro, não tem potência passiva alguma. O que necessita ser criado para ser está sempre exposto a se desfazer, visto ser composto por ato e potência. Aí está o âmago do drama da existência humana: na possibilidade de voltar ao não-ser. É a possibilidade de defeito que ameaça a obra da criação. Enquanto se está no plano físico, isso é apenas possibilidade sem perigo.
O conceito de mal de que trata a filosofia tomasiana se distingue do conceito de mal da filosofia grega. O homem, subvertendo-se à ordem, faz muito mais que perder sua humanidade, como em Aristóteles, e muito mais que comprometer seu destino, como em Platão. “Ele introduz a desordem na ordem divina e dá o doloroso espetáculo de um ser em revolta contra o Ser” (GILSON, 2006, p. 162). Na filosofia cristã há um Deus, que é ser, e todo atentado contra o Ser remete diretamente a Deus. É por isso que o mal cristão é nomeado diferentemente, como pecado.
O pecado faz o Ser imaculado, de algum modo, ter uma nódoa, como pautas que recebem a desarmonia de uma nota dissonante. Além do mais, o pecado transtorna o corpo que a alma anima, quando submete a razão à concupiscência. Desta forma, faz o inferior predominar sobre o superior.
Misto de ser e de não-ser, o homem a ambos tende. Tratemos da inclinação ao ser e da vontade livre do homem.
No helenismo clássico, o homem tem uma vontade espontânea inclinada para o fim que lhe é natural: a felicidade. Na filosofia cristã, e particularmente em Tomás, esse fim, ou seja, essa felicidade, tem nome e sentido mais amoldados a um pensamento cristão. Esse fim último a que o homem está propenso consiste em algo a que o autor chama de bem-aventurança. Tal bem-aventurança acaba por coincidir com o próprio Deus, uma vez que ele é sua essência.
Consistiria essa bem-aventurança em apenas felicidade? Mais profunda que isso, ela corresponde à visão de Deus em sua essência. E isso por deste modo se dar o definitivo encontro de um ser como Ser absoluto.
A liberdade de não escolher o melhor e trocá-lo por um pseudo-melhor põe o homem mais próximo do não-ser. É a própria liberdade humana que o coloca nesta encruzilhada do ser e do não-ser. Por o homem não conhecer diretamente a perfeição suprema, busca entre os bens o soberano bem, que é Deus.
Por detrás dessa busca pelo não-ser se entrevê um desejo de independência, de insubordinação. E essa é uma tentação a que tende o homem.
Nada do que existe é independente de Deus, em Tomás de Aquino. Assim, a independência é a maior das tentações a que está sujeita a criatura. No universo criado, há a dependência ontológica radical da existência de todos os seres em relação a Deus, Aquele Que É.
O ser humano, criatura, é algo justamente por depender do ser. Em outras palavras, não é a independência que o torna algo, mas a dependência. Perdendo sua “independência” do Ser supremo, o homem ganha sua participação nele. O desejo de autonomia absoluta arrisca o ser do homem, posto que o atiraria no vazio do não-ser. A factível queda para o nada é o horror que assombra a criatura consciente, isto é, o homem.
Ao não contemplar o Ser supremo, que lhe habita o âmago, o ser humano acaba por confundir-se com o ser: o homem, que não é, substitui o único que propriamente é. Deste modo, o não-sou destrona o Eu Sou. Fazendo-se independente do ser, afasta-se dele.
Do mesmo modo, a possibilidade de se assemelhar ao Ser supremo não lhe é negada, antes a ela o ser humano é convidado. Do imo do homem, que é ser, brota-lhe a inclinação ao Ser supremo.
Dada a dependência ontológica radical do homem em relação a Deus, é impossível a solidão humana. Aquele que tem um vínculo com outro, sem o qual sequer existiria, jamais poderia se encontrar só.
. “O que é contingente e submetido ao devir não pode se dar o que ele próprio não tem” (GILSON, 2006, p.212).
A própria miséria do estado presente humano, o decaído, lembra uma magnificência, uma vez que, para ser decaído, é necessário ser.
Essa presença de Deus no homem lhe assegura ainda outra magnificência. Há nele o agente que lhe tirou da potência e do nada e lhe pôs na existência atual. Como é próprio da fé tomasiana, esse agente é o mesmo que se revelara a Moisés: ninguém menos que “Aquele Que É”.
O único detentor do poder de afirmar “eu sou” é vividamente presente no homem. Ainda mais, pode-lhe conferir o direito de afirmar, de modo participante, que também é, ou seja, é graças à presença de Deus em si que o ser humano pode afirmar que existe. Nisso tem-se a outra magnificência do homem.
Diferentemente do nada, que não é, o homem é. Além do mais, é uma morada do Ser supremo. E isso nos conduz a afirmar o homem como magnificentíssimo. Propende ao nada e, simultaneamente, ao ser. Pode querer a um mais que a outro: casulo do ser, pode optar por ele. Ou ainda, atirar-se no nada, que lhe é inerente, e negar sua tendência ao ser. Por essa inerência, o drama marca a existência humana.
Deus, aquele que é, é sua essência. Sua essência é seu ser mesmo. Já o homem tem sua essência em Deus, e quando é criado, dele recebe sua existência. Essa existência recebida de Deus lhe proporciona ser uma substância. Como homem, não existe por si, ou seja, ele não é sua existência: tem seu ser recebido de outro. Por não ser o Ser absoluto, é suscetível a voltar ao não-ser.
O estatuto metafísico humano põe todo homem à procura do Ser, do qual proveio, tendo o nada como predador que lhe pode corromper a existência. Quando opta pelo não-ser, o homem distancia-se de seu ser e do Ser absoluto, que lhe deu existência. Por ter o ser recebido e por isso o vulnerar ao não-ser, o homem tem sua existência como drama.



*Henrique Ferreira Albuquerque - Graduando em Filosofia pela Faculdade João Paulo II.
Resumo do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado durante o I Seminário de Produção Científica da FAJOPA.



terça-feira, 20 de novembro de 2007

O amor próprio em Montaigne

Ivonil Parraz*
Para que possamos compreender a noção laica[1] do amor-próprio que chega até o século XVI, mais especificamente em Montaigne, precisamos remontar a Grécia Antiga. Sócrates toma o oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”, num sentido moral. Para o filósofo de Atenas, quanto mais o homem se conhece mais ele reconhece que nada sabe. Esse conhecimento de si leva-o a uma aceitação de si. È aceitando-se tal como é que é possível uma convivência tranqüila consigo mesmo, ou seja, um habitar sem rancor a si mesmo. O mito de Narciso, porém aponta para uma outra via que não a socrática. O amor que o jovem Narciso nutre por si mesmo o leva a perder-se quando passa a se conhecer. Sua desgraça é gestada no momento em que ele conhece a si mesmo. E para Montaigne? Como o filósofo do final da Renascença pensa sobre o conhecimento de si e o amor de si. É possível conhecer-se e amar a si mesmo? Quando nasce Narciso, o divino Tirésias é consultado acerca de seu destino. Tirésias profetiza uma longa vida para a criança “desde que ela não se conheça” (Jean- Robert Armogathe, 2006, p. 225). Mas Narciso, em sua adolescência apaixona-se por si mesmo quando, diante de uma fonte, vê sua imagem refletida na água. A sua imagem aparece a si mesmo tão bela que ele não demora a enamorar-se de si. A princípio, Narciso não sabe que aquela imagem é imagem dele mesmo. Ele não se conhece. Por não se conhecer, o próprio Narciso é um outro para ele. É por esse outro, que é ele mesmo, que o jovem se apaixona. Somente depois de algum tempo o jovem apaixonado reconhece a si mesmo. Mas tão amante de si, a ponto de afirmar que: “eu me ardo por mim mesmo e excito o fogo que me devora” (Jean-Robert Armogathe, 2006, p.225), o jovem enamorado não consegue amar senão a si: a imagem de si mesmo o devora. Não há nenhuma possibilidade de sair de si. O amor por si mesmo é tamanho que não há nenhum laço que possa uni-lo a qualquer outro que não a si. Narciso perde-se a si mesmo em si mesmo. Conhecer a si mesmo foi sua desgraça: Narciso mergulha em sua própria imagem. Esta o traga! Na Apologia de Raymond Sebond, Montaigne sustenta que um dos piores defeitos do homem -a presunção, a ambição- consiste em crer que possuímos a verdade sobre as coisas e a verdadeira figura de Deus. Ora, a verdade habita com Deus e não pertence senão a Deus, em um além que podemos somente “imaginar inimaginável”. Assim, quanto à verdade, não fazemos senão forja-la segundo a nossa conveniência. Tudo o que acreditamos construir, como alicerçados em bases verdadeiras, são tão-somente simulacros. Nós mesmos, para nós e para os outros, somos simulacros que construímos. O que Montaigne censura na presunção é o fato de o homem apresentar diferente do que ele é: “o homem é, por dentro e por fora, fraqueza e mentira” (Montaigne, 1980. p. 275). Enganamo-nos e enganamos os outros: eis o disfarce dos homens. Mas, Montaigne condena, contra a visão grega, o amor-próprio? [...] tudo o que participa da natureza humana está sempre nascendo ou morrendo, em condições que só dão de nós uma aparência mal definida e obscura; e se procuramos saber o que somos na realidade, é como se quiséssemos segurar a água; quanto mais apertamos o que é fluído, tanto mais deixamos escapar o que pegamos. Por isso, pelo fato de toda a coisa estar sujeita à transformação, a razão nada pode apreender na sua busca do que realmente subsiste, pois tudo, ou nasce para a existência e não está inteiramente formado, ou começa a morrer antes de nascer (Montaigne, 1980, p. 277-278). O que caracteriza a natureza humana é a fluidez do passageiro. A razão humana nada pode apreender na sua busca do que subsiste, uma vez que o que caracteriza a Natureza, inclusive a natureza humana, é a instabilidade contínua. . Tudo lhe escapa “numa fuga eterna”. Somente aquele que é eterno é: somente Deus é ser rigorosamente falando. Contudo, posto a razão, em sua fraqueza originária, não alcançar Aquele que É, o homem está condenado, na visão de Montaigne, a viver separado do Ser. Cabe a ele voltar-se para si mesmo e viver sua finitude sem se inquietar com aquilo que ultrapassa as suas capacidades. O fim da Apologia de Raymond Sebond é esclarecedora sobre esse ponto: “[...] elevar-se-á, se Deus lhe quiser dar a mão. Elevar-se-á sob a condição de abandonar seus meios de ação, de renunciar a eles e de se deixar erguer e elevar-se unicamente pelos meios que lhe vêm do céu [...] (Montaigne, 1980, p. 279). Somente a luz sobrenatural poderá elevar o homem acima do homem, não a luz natural. Ora, se o homem está condenado a voltar-se para sua finitude, posto não poder, via razão, alcançar o ser, o que ele encontra em si mesmo? Se não há no homem nenhuma via natural de comunicação com o Ser, estabilidade, plenitude, substância encontra-se em outro (Deus), não no eu (finito). Assim, o que o homem encontra-se ao voltar para si é sua nudez e seu vazio: “o homem é nu e vazio”, sustenta Montaigne. Retornando a si mesmo, posto não poder alcançar, com sua razão, o Ser, o homem entrega-se ao seu próprio vazio: “o pior lugar que podemos ocupar está em nós mesmos” (Montaigne, 1980, p. 263). Somos condenados a sofrer uma ausência em nós mesmos: a estabilidade, a plenitude. Somos tão somente finitos. Recolhendo em si mesmo, como convida a moral socrática da posso de si, o homem entrega-se ao vazio. O conhecimento de si pode levar o homem ao amor de si? Conhecendo a si mesmo, o que é “nu e vazio”, o homem passa a ter consciência que o seu desejo de atingir a plenitude, a estabilidade ele o tem exatamente porque essas qualidades lhes são ausentes. Só desejamos o que não possuímos.. Subtraindo a obra do desejo, este que sempre coloca o homem fora de si mesmo, a consciência apreende que em nada possuir, ela encontra-se livre para considerar tudo e não se prender a nada. É no desprendimento de tudo que o homem pode encontrar a felicidade. Esse desprendimento não implica no desprezo de si, posto que é somente no retorno a si que ele pode livrar-se de seus desejos, que o lança para fora de si. Com efeito, o conhecimento de si é inseparável do amor de si. Conhecendo-se como ser finito que é, e que cabe a ele tão-somente gozar dessa finitude, o homem apreende amar-se tal como é. Todo disfarce em se mostrar diferente do que é (ambição, presunção) revela-se como uma negação e, consequentemente, como um desconhecimento de si. Cabe ao homem, em sua finitude, habitar a si mesmo.

Referências:
ARMOGATHE, JEAN-ROBERT: Pascal e o Amor-Próprio. Kriterion. Belo Horizonte, v. 47, n 114. Jul - Dez,2006. p.223-236.
MONTAGNE. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Notas:
[1] Chamamos laica em oposição a interpretação de Santo Agostinho em sua teoria dos dois amores, a de Tomás de Aquino: Tomo I, Vol. II, q. 60, bem como a interpretação da Devotio Moderna.

Ivonil Parraz
Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e Coordenador do curso de Filosofia da Faculdade João Paulo II.
link para o lattes:
http://lattes.cnpq.br/1789633835487059