quinta-feira, 29 de novembro de 2007

O drama da existência humana em Tomás e Aquino




Henrique Ferreira Albuquerque*




A filosofia cristã é a expressão mais adequada da filosofia medieval, porque o espírito desta é um espírito cristão. É ela quem penetra a tradição grega, trabalha-a por dentro e produz uma óptica cristã das coisas. A filosofia orienta-se por uma inédita luz: a da Revelação.
A Revelação exerceu influência decisiva sobre a metafísica, nela introduzindo a identificação entre Deus e o ser.

Nesse caminho empreendido por Tomás, percorremos sua noção de ser, oriunda da relevante revelação do nome divino. É dela que sairá toda a metafísica tomasiana. Tratamos do que se pode atribuir a Deus, que é criador do mundo. E dentro desse mundo causado por ele, atentamos nossa pesquisa no drama da existência do homem, que tem seu ser recebido de outro que não ele: de Deus. Abordamos o abismo do nada, predador do ser criado. O homem, dotado de vontade, se inclina ao Ser supremo que o causou, mas também ao nada do qual proveio. Esse homem é salvo do nada pelo Ser supremo, antes que a ele retorne. Este Ser é quem lhe dá a existência.
Muito mais que trabalhar por dentro as metafísicas anteriores, Tomás compõe a sua própria. Ainda que não se pense o ser, ele é. Aquilo que é, se é, é ser. A filosofia de Tomás de Aquino se desenvolve a partir de sua noção de ser, que lhe é muito própria, tendo sido elaborada por ele mesmo. Esta noção é aplicada a Deus: ele é o ser. O conceito tomasiano de ser foi preparado na história da filosofia pelo árabe Avicena, sustentando que “a existência é um complemento da substância que, por não estar incluso na essência, lhe sobrevém, por assim dizer, como acidente” (GILSON, 1962, p. 23).
Há um Deus e ele é o ser. Isto corresponde à pedra angular da filosofia cristã, posta por Moisés.
Platão e Aristóteles estavam no caminho do ser. A filosofia cristã prosseguiu no mesmo caminho, isto é, continuou o que pensaram e só levou o pensamento grego à perfeição porque este era verdadeiro.
O ser é importante para os seres, que nada mudam no ser. A criatura, em sua existência e substancialidade, é um análogo do criador, por não ser o ser, mas participar dele. Toda participação supõe que o que participa seja e não seja aquilo de que participa.
Deus cria a partir do nada. O que é criado não é feito por movimento ou mudança. Se fosse por movimento ou mudança, seria a partir de matéria pré-existente, em outras palavras, seria uma formação da matéria que já havia.
O ser só pode ser dado à criatura por aquele que é o ser em si. “[...] Deus produz as coisas em seu ser a partir do nada” (TOMÁS DE AQUINO, 1ª parte, q. 45, art. 2, resp., 2001, p.49). As coisas são criadas do interior do ser divino a partir do nada, de maneira que tudo que é criado resguarda vestígio divino e, simultaneamente, resquício do nada, ou seja, há um misto de ser e não-ser em tudo que Deus produziu.
É necessário algo que conserve os seres, dando-lhes a existência. Quem cumpre esse papel é Deus que, sendo o ser, o único que o é, pode dar existência a outros seres. Tudo o que não é Deus só dele pode receber sua existência, pois causar o ser é próprio somente do ser.
Este universo criado se abisma incessantemente para o nada por si mesmo. Só é salvo a cada instante do não-ser pelo dom permanente de um ser, que ele não pode nem se dar nem conservar. Nada é, se faz ou faz sem que sua existência lhe venha do ser. O risco de se lançar ao nada é algo em que incorre toda criatura. E o homem tem consciência desse risco que corre.
A existência do homem traz em si mesma uma dramaticidade, pois o homem recebe seu ser de outro e isto o vulnera ao não-ser. Para tanto, tratamos do que é o ser humano, em sua ontologia, e das propensões a que ele está sujeito, em função de sua mesma ontologia.
O homem tomasiano é uma criatura, que sai das mãos do Ser criador e dele recebe seu ser.
O homem não dá a si sua existência. Se ele é por outro, não pode ter outra causa primeira senão o que é por si mesmo: Deus. O fato de seu ser advir de outro que não ele mesmo implicará no drama da existência do homem, uma vez que ele, por não ser o Ser, estará suscetível ao nada.
Enquanto Sócrates recebe do oráculo de Delfos a revelação “conhece-te a ti mesmo”, para a filosofia cristã o homem é revelado como imagem e semelhança de Deus (GILSON, 2006). A imagem divina não é apenas aquilo em que o homem se parece com Deus: é o movimento da alma, usando de sua similitude, em direção a Deus.
O homem cristão guarda semelhança e dessemelhança em relação a Deus. Semelhança, por ser um ente e dele ter recebido seu ser. Dessemelhança, por ser um ente participante, diferentemente de Deus que é o ente em si. Ele é, portanto, uma imagem disforme de Deus. Tal deformidade será a causa de o homem ser propenso ao não-ser. Sem a condução divina, as coisas voltariam ao nada do qual vieram.
Deus cria a partir do nada, pois criação é emanação de um ente a partir do não-ente, que é o nada. (TOMÁS DE AQUINO, 1ª parte, q. 45, art. 1, resp., 2003). Ele mantém a criação, antes que esta volte ao nada. Assim, temos que o Criador extrai a criatura do nada e não deixa o nada lhe penetrar, impossibilitando que volte ao não-ser.
Criando as coisas do nada, Deus dá-lhes o seu próprio ser de forma participada. As coisas criadas são algo, isto é, têm o ser por participação em Deus, que é o Ser. A existência é doação divina, recebida pelas criaturas. Portanto, não lhes pertence: o ser das criaturas é outro e, por conseguinte, o ser do homem também. Por não ser o Ser, mas dele participar, o homem pode abismar-se no nada, isto é, corromper-se.
O mal decorre da inevitável limitação que a criatura comporta em si. Existe uma distância entre Deus e ela. Quando a perfeição divina se estende à criatura, passa necessariamente de forma participada. Daí a possibilidade do mal. O mal, evidentemente, é uma privação e sua noção só tem sentido se a relacionarmos a noções positivas: é um ser de razão.
As corrupções, a que tende a criatura, advêm da mutabilidade, porque as criaturas estão sujeitas ao não-ser. Em outras palavras, podem voltar a não existir, tal qual não existiam antes. Está inscrita na essência da criatura a mutabilidade, de modo coessencial. O fato de ser criada é marca disto, pois poderia não ter sido criada. Se as criaturas são algo e vieram do nada, e se o nada é diferente do ser, então há mutabilidade nas criaturas, pois não eram nada e agora são algo. Esta mutabilidade vulnera o ser ao não-ser.
Por sua aptidão a não ser, a criatura tende ao nada. Sua contingência radical a coloca constantemente no perigo de retornar ao vazio do qual veio. Do não-ser veio e por ele é sugada implacavelmente a cada instante. A inclinação ao nada é característica intrínseca e inerente do ser criado, precisamente pelo fato de ele existir como criação. Assim, seu existir como criatura é responsável por propender ao nada.
Só não propende ao nada o que não veio dele, ou seja, Deus. Ele, sendo ato puro, não tem potência passiva alguma. O que necessita ser criado para ser está sempre exposto a se desfazer, visto ser composto por ato e potência. Aí está o âmago do drama da existência humana: na possibilidade de voltar ao não-ser. É a possibilidade de defeito que ameaça a obra da criação. Enquanto se está no plano físico, isso é apenas possibilidade sem perigo.
O conceito de mal de que trata a filosofia tomasiana se distingue do conceito de mal da filosofia grega. O homem, subvertendo-se à ordem, faz muito mais que perder sua humanidade, como em Aristóteles, e muito mais que comprometer seu destino, como em Platão. “Ele introduz a desordem na ordem divina e dá o doloroso espetáculo de um ser em revolta contra o Ser” (GILSON, 2006, p. 162). Na filosofia cristã há um Deus, que é ser, e todo atentado contra o Ser remete diretamente a Deus. É por isso que o mal cristão é nomeado diferentemente, como pecado.
O pecado faz o Ser imaculado, de algum modo, ter uma nódoa, como pautas que recebem a desarmonia de uma nota dissonante. Além do mais, o pecado transtorna o corpo que a alma anima, quando submete a razão à concupiscência. Desta forma, faz o inferior predominar sobre o superior.
Misto de ser e de não-ser, o homem a ambos tende. Tratemos da inclinação ao ser e da vontade livre do homem.
No helenismo clássico, o homem tem uma vontade espontânea inclinada para o fim que lhe é natural: a felicidade. Na filosofia cristã, e particularmente em Tomás, esse fim, ou seja, essa felicidade, tem nome e sentido mais amoldados a um pensamento cristão. Esse fim último a que o homem está propenso consiste em algo a que o autor chama de bem-aventurança. Tal bem-aventurança acaba por coincidir com o próprio Deus, uma vez que ele é sua essência.
Consistiria essa bem-aventurança em apenas felicidade? Mais profunda que isso, ela corresponde à visão de Deus em sua essência. E isso por deste modo se dar o definitivo encontro de um ser como Ser absoluto.
A liberdade de não escolher o melhor e trocá-lo por um pseudo-melhor põe o homem mais próximo do não-ser. É a própria liberdade humana que o coloca nesta encruzilhada do ser e do não-ser. Por o homem não conhecer diretamente a perfeição suprema, busca entre os bens o soberano bem, que é Deus.
Por detrás dessa busca pelo não-ser se entrevê um desejo de independência, de insubordinação. E essa é uma tentação a que tende o homem.
Nada do que existe é independente de Deus, em Tomás de Aquino. Assim, a independência é a maior das tentações a que está sujeita a criatura. No universo criado, há a dependência ontológica radical da existência de todos os seres em relação a Deus, Aquele Que É.
O ser humano, criatura, é algo justamente por depender do ser. Em outras palavras, não é a independência que o torna algo, mas a dependência. Perdendo sua “independência” do Ser supremo, o homem ganha sua participação nele. O desejo de autonomia absoluta arrisca o ser do homem, posto que o atiraria no vazio do não-ser. A factível queda para o nada é o horror que assombra a criatura consciente, isto é, o homem.
Ao não contemplar o Ser supremo, que lhe habita o âmago, o ser humano acaba por confundir-se com o ser: o homem, que não é, substitui o único que propriamente é. Deste modo, o não-sou destrona o Eu Sou. Fazendo-se independente do ser, afasta-se dele.
Do mesmo modo, a possibilidade de se assemelhar ao Ser supremo não lhe é negada, antes a ela o ser humano é convidado. Do imo do homem, que é ser, brota-lhe a inclinação ao Ser supremo.
Dada a dependência ontológica radical do homem em relação a Deus, é impossível a solidão humana. Aquele que tem um vínculo com outro, sem o qual sequer existiria, jamais poderia se encontrar só.
. “O que é contingente e submetido ao devir não pode se dar o que ele próprio não tem” (GILSON, 2006, p.212).
A própria miséria do estado presente humano, o decaído, lembra uma magnificência, uma vez que, para ser decaído, é necessário ser.
Essa presença de Deus no homem lhe assegura ainda outra magnificência. Há nele o agente que lhe tirou da potência e do nada e lhe pôs na existência atual. Como é próprio da fé tomasiana, esse agente é o mesmo que se revelara a Moisés: ninguém menos que “Aquele Que É”.
O único detentor do poder de afirmar “eu sou” é vividamente presente no homem. Ainda mais, pode-lhe conferir o direito de afirmar, de modo participante, que também é, ou seja, é graças à presença de Deus em si que o ser humano pode afirmar que existe. Nisso tem-se a outra magnificência do homem.
Diferentemente do nada, que não é, o homem é. Além do mais, é uma morada do Ser supremo. E isso nos conduz a afirmar o homem como magnificentíssimo. Propende ao nada e, simultaneamente, ao ser. Pode querer a um mais que a outro: casulo do ser, pode optar por ele. Ou ainda, atirar-se no nada, que lhe é inerente, e negar sua tendência ao ser. Por essa inerência, o drama marca a existência humana.
Deus, aquele que é, é sua essência. Sua essência é seu ser mesmo. Já o homem tem sua essência em Deus, e quando é criado, dele recebe sua existência. Essa existência recebida de Deus lhe proporciona ser uma substância. Como homem, não existe por si, ou seja, ele não é sua existência: tem seu ser recebido de outro. Por não ser o Ser absoluto, é suscetível a voltar ao não-ser.
O estatuto metafísico humano põe todo homem à procura do Ser, do qual proveio, tendo o nada como predador que lhe pode corromper a existência. Quando opta pelo não-ser, o homem distancia-se de seu ser e do Ser absoluto, que lhe deu existência. Por ter o ser recebido e por isso o vulnerar ao não-ser, o homem tem sua existência como drama.



*Henrique Ferreira Albuquerque - Graduando em Filosofia pela Faculdade João Paulo II.
Resumo do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado durante o I Seminário de Produção Científica da FAJOPA.



terça-feira, 20 de novembro de 2007

O amor próprio em Montaigne

Ivonil Parraz*
Para que possamos compreender a noção laica[1] do amor-próprio que chega até o século XVI, mais especificamente em Montaigne, precisamos remontar a Grécia Antiga. Sócrates toma o oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”, num sentido moral. Para o filósofo de Atenas, quanto mais o homem se conhece mais ele reconhece que nada sabe. Esse conhecimento de si leva-o a uma aceitação de si. È aceitando-se tal como é que é possível uma convivência tranqüila consigo mesmo, ou seja, um habitar sem rancor a si mesmo. O mito de Narciso, porém aponta para uma outra via que não a socrática. O amor que o jovem Narciso nutre por si mesmo o leva a perder-se quando passa a se conhecer. Sua desgraça é gestada no momento em que ele conhece a si mesmo. E para Montaigne? Como o filósofo do final da Renascença pensa sobre o conhecimento de si e o amor de si. É possível conhecer-se e amar a si mesmo? Quando nasce Narciso, o divino Tirésias é consultado acerca de seu destino. Tirésias profetiza uma longa vida para a criança “desde que ela não se conheça” (Jean- Robert Armogathe, 2006, p. 225). Mas Narciso, em sua adolescência apaixona-se por si mesmo quando, diante de uma fonte, vê sua imagem refletida na água. A sua imagem aparece a si mesmo tão bela que ele não demora a enamorar-se de si. A princípio, Narciso não sabe que aquela imagem é imagem dele mesmo. Ele não se conhece. Por não se conhecer, o próprio Narciso é um outro para ele. É por esse outro, que é ele mesmo, que o jovem se apaixona. Somente depois de algum tempo o jovem apaixonado reconhece a si mesmo. Mas tão amante de si, a ponto de afirmar que: “eu me ardo por mim mesmo e excito o fogo que me devora” (Jean-Robert Armogathe, 2006, p.225), o jovem enamorado não consegue amar senão a si: a imagem de si mesmo o devora. Não há nenhuma possibilidade de sair de si. O amor por si mesmo é tamanho que não há nenhum laço que possa uni-lo a qualquer outro que não a si. Narciso perde-se a si mesmo em si mesmo. Conhecer a si mesmo foi sua desgraça: Narciso mergulha em sua própria imagem. Esta o traga! Na Apologia de Raymond Sebond, Montaigne sustenta que um dos piores defeitos do homem -a presunção, a ambição- consiste em crer que possuímos a verdade sobre as coisas e a verdadeira figura de Deus. Ora, a verdade habita com Deus e não pertence senão a Deus, em um além que podemos somente “imaginar inimaginável”. Assim, quanto à verdade, não fazemos senão forja-la segundo a nossa conveniência. Tudo o que acreditamos construir, como alicerçados em bases verdadeiras, são tão-somente simulacros. Nós mesmos, para nós e para os outros, somos simulacros que construímos. O que Montaigne censura na presunção é o fato de o homem apresentar diferente do que ele é: “o homem é, por dentro e por fora, fraqueza e mentira” (Montaigne, 1980. p. 275). Enganamo-nos e enganamos os outros: eis o disfarce dos homens. Mas, Montaigne condena, contra a visão grega, o amor-próprio? [...] tudo o que participa da natureza humana está sempre nascendo ou morrendo, em condições que só dão de nós uma aparência mal definida e obscura; e se procuramos saber o que somos na realidade, é como se quiséssemos segurar a água; quanto mais apertamos o que é fluído, tanto mais deixamos escapar o que pegamos. Por isso, pelo fato de toda a coisa estar sujeita à transformação, a razão nada pode apreender na sua busca do que realmente subsiste, pois tudo, ou nasce para a existência e não está inteiramente formado, ou começa a morrer antes de nascer (Montaigne, 1980, p. 277-278). O que caracteriza a natureza humana é a fluidez do passageiro. A razão humana nada pode apreender na sua busca do que subsiste, uma vez que o que caracteriza a Natureza, inclusive a natureza humana, é a instabilidade contínua. . Tudo lhe escapa “numa fuga eterna”. Somente aquele que é eterno é: somente Deus é ser rigorosamente falando. Contudo, posto a razão, em sua fraqueza originária, não alcançar Aquele que É, o homem está condenado, na visão de Montaigne, a viver separado do Ser. Cabe a ele voltar-se para si mesmo e viver sua finitude sem se inquietar com aquilo que ultrapassa as suas capacidades. O fim da Apologia de Raymond Sebond é esclarecedora sobre esse ponto: “[...] elevar-se-á, se Deus lhe quiser dar a mão. Elevar-se-á sob a condição de abandonar seus meios de ação, de renunciar a eles e de se deixar erguer e elevar-se unicamente pelos meios que lhe vêm do céu [...] (Montaigne, 1980, p. 279). Somente a luz sobrenatural poderá elevar o homem acima do homem, não a luz natural. Ora, se o homem está condenado a voltar-se para sua finitude, posto não poder, via razão, alcançar o ser, o que ele encontra em si mesmo? Se não há no homem nenhuma via natural de comunicação com o Ser, estabilidade, plenitude, substância encontra-se em outro (Deus), não no eu (finito). Assim, o que o homem encontra-se ao voltar para si é sua nudez e seu vazio: “o homem é nu e vazio”, sustenta Montaigne. Retornando a si mesmo, posto não poder alcançar, com sua razão, o Ser, o homem entrega-se ao seu próprio vazio: “o pior lugar que podemos ocupar está em nós mesmos” (Montaigne, 1980, p. 263). Somos condenados a sofrer uma ausência em nós mesmos: a estabilidade, a plenitude. Somos tão somente finitos. Recolhendo em si mesmo, como convida a moral socrática da posso de si, o homem entrega-se ao vazio. O conhecimento de si pode levar o homem ao amor de si? Conhecendo a si mesmo, o que é “nu e vazio”, o homem passa a ter consciência que o seu desejo de atingir a plenitude, a estabilidade ele o tem exatamente porque essas qualidades lhes são ausentes. Só desejamos o que não possuímos.. Subtraindo a obra do desejo, este que sempre coloca o homem fora de si mesmo, a consciência apreende que em nada possuir, ela encontra-se livre para considerar tudo e não se prender a nada. É no desprendimento de tudo que o homem pode encontrar a felicidade. Esse desprendimento não implica no desprezo de si, posto que é somente no retorno a si que ele pode livrar-se de seus desejos, que o lança para fora de si. Com efeito, o conhecimento de si é inseparável do amor de si. Conhecendo-se como ser finito que é, e que cabe a ele tão-somente gozar dessa finitude, o homem apreende amar-se tal como é. Todo disfarce em se mostrar diferente do que é (ambição, presunção) revela-se como uma negação e, consequentemente, como um desconhecimento de si. Cabe ao homem, em sua finitude, habitar a si mesmo.

Referências:
ARMOGATHE, JEAN-ROBERT: Pascal e o Amor-Próprio. Kriterion. Belo Horizonte, v. 47, n 114. Jul - Dez,2006. p.223-236.
MONTAGNE. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Notas:
[1] Chamamos laica em oposição a interpretação de Santo Agostinho em sua teoria dos dois amores, a de Tomás de Aquino: Tomo I, Vol. II, q. 60, bem como a interpretação da Devotio Moderna.

Ivonil Parraz
Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e Coordenador do curso de Filosofia da Faculdade João Paulo II.
link para o lattes:
http://lattes.cnpq.br/1789633835487059