Ivonil Parraz*
Para que possamos compreender a noção laica[1] do amor-próprio que chega até o século XVI, mais especificamente em Montaigne, precisamos remontar a Grécia Antiga. Sócrates toma o oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”, num sentido moral. Para o filósofo de Atenas, quanto mais o homem se conhece mais ele reconhece que nada sabe. Esse conhecimento de si leva-o a uma aceitação de si. È aceitando-se tal como é que é possível uma convivência tranqüila consigo mesmo, ou seja, um habitar sem rancor a si mesmo. O mito de Narciso, porém aponta para uma outra via que não a socrática. O amor que o jovem Narciso nutre por si mesmo o leva a perder-se quando passa a se conhecer. Sua desgraça é gestada no momento em que ele conhece a si mesmo. E para Montaigne? Como o filósofo do final da Renascença pensa sobre o conhecimento de si e o amor de si. É possível conhecer-se e amar a si mesmo? Quando nasce Narciso, o divino Tirésias é consultado acerca de seu destino. Tirésias profetiza uma longa vida para a criança “desde que ela não se conheça” (Jean- Robert Armogathe, 2006, p. 225). Mas Narciso, em sua adolescência apaixona-se por si mesmo quando, diante de uma fonte, vê sua imagem refletida na água. A sua imagem aparece a si mesmo tão bela que ele não demora a enamorar-se de si. A princípio, Narciso não sabe que aquela imagem é imagem dele mesmo. Ele não se conhece. Por não se conhecer, o próprio Narciso é um outro para ele. É por esse outro, que é ele mesmo, que o jovem se apaixona. Somente depois de algum tempo o jovem apaixonado reconhece a si mesmo. Mas tão amante de si, a ponto de afirmar que: “eu me ardo por mim mesmo e excito o fogo que me devora” (Jean-Robert Armogathe, 2006, p.225), o jovem enamorado não consegue amar senão a si: a imagem de si mesmo o devora. Não há nenhuma possibilidade de sair de si. O amor por si mesmo é tamanho que não há nenhum laço que possa uni-lo a qualquer outro que não a si. Narciso perde-se a si mesmo em si mesmo. Conhecer a si mesmo foi sua desgraça: Narciso mergulha em sua própria imagem. Esta o traga! Na Apologia de Raymond Sebond, Montaigne sustenta que um dos piores defeitos do homem -a presunção, a ambição- consiste em crer que possuímos a verdade sobre as coisas e a verdadeira figura de Deus. Ora, a verdade habita com Deus e não pertence senão a Deus, em um além que podemos somente “imaginar inimaginável”. Assim, quanto à verdade, não fazemos senão forja-la segundo a nossa conveniência. Tudo o que acreditamos construir, como alicerçados em bases verdadeiras, são tão-somente simulacros. Nós mesmos, para nós e para os outros, somos simulacros que construímos. O que Montaigne censura na presunção é o fato de o homem apresentar diferente do que ele é: “o homem é, por dentro e por fora, fraqueza e mentira” (Montaigne, 1980. p. 275). Enganamo-nos e enganamos os outros: eis o disfarce dos homens. Mas, Montaigne condena, contra a visão grega, o amor-próprio? [...] tudo o que participa da natureza humana está sempre nascendo ou morrendo, em condições que só dão de nós uma aparência mal definida e obscura; e se procuramos saber o que somos na realidade, é como se quiséssemos segurar a água; quanto mais apertamos o que é fluído, tanto mais deixamos escapar o que pegamos. Por isso, pelo fato de toda a coisa estar sujeita à transformação, a razão nada pode apreender na sua busca do que realmente subsiste, pois tudo, ou nasce para a existência e não está inteiramente formado, ou começa a morrer antes de nascer (Montaigne, 1980, p. 277-278). O que caracteriza a natureza humana é a fluidez do passageiro. A razão humana nada pode apreender na sua busca do que subsiste, uma vez que o que caracteriza a Natureza, inclusive a natureza humana, é a instabilidade contínua. . Tudo lhe escapa “numa fuga eterna”. Somente aquele que é eterno é: somente Deus é ser rigorosamente falando. Contudo, posto a razão, em sua fraqueza originária, não alcançar Aquele que É, o homem está condenado, na visão de Montaigne, a viver separado do Ser. Cabe a ele voltar-se para si mesmo e viver sua finitude sem se inquietar com aquilo que ultrapassa as suas capacidades. O fim da Apologia de Raymond Sebond é esclarecedora sobre esse ponto: “[...] elevar-se-á, se Deus lhe quiser dar a mão. Elevar-se-á sob a condição de abandonar seus meios de ação, de renunciar a eles e de se deixar erguer e elevar-se unicamente pelos meios que lhe vêm do céu [...] (Montaigne, 1980, p. 279). Somente a luz sobrenatural poderá elevar o homem acima do homem, não a luz natural. Ora, se o homem está condenado a voltar-se para sua finitude, posto não poder, via razão, alcançar o ser, o que ele encontra em si mesmo? Se não há no homem nenhuma via natural de comunicação com o Ser, estabilidade, plenitude, substância encontra-se em outro (Deus), não no eu (finito). Assim, o que o homem encontra-se ao voltar para si é sua nudez e seu vazio: “o homem é nu e vazio”, sustenta Montaigne. Retornando a si mesmo, posto não poder alcançar, com sua razão, o Ser, o homem entrega-se ao seu próprio vazio: “o pior lugar que podemos ocupar está em nós mesmos” (Montaigne, 1980, p. 263). Somos condenados a sofrer uma ausência em nós mesmos: a estabilidade, a plenitude. Somos tão somente finitos. Recolhendo em si mesmo, como convida a moral socrática da posso de si, o homem entrega-se ao vazio. O conhecimento de si pode levar o homem ao amor de si? Conhecendo a si mesmo, o que é “nu e vazio”, o homem passa a ter consciência que o seu desejo de atingir a plenitude, a estabilidade ele o tem exatamente porque essas qualidades lhes são ausentes. Só desejamos o que não possuímos.. Subtraindo a obra do desejo, este que sempre coloca o homem fora de si mesmo, a consciência apreende que em nada possuir, ela encontra-se livre para considerar tudo e não se prender a nada. É no desprendimento de tudo que o homem pode encontrar a felicidade. Esse desprendimento não implica no desprezo de si, posto que é somente no retorno a si que ele pode livrar-se de seus desejos, que o lança para fora de si. Com efeito, o conhecimento de si é inseparável do amor de si. Conhecendo-se como ser finito que é, e que cabe a ele tão-somente gozar dessa finitude, o homem apreende amar-se tal como é. Todo disfarce em se mostrar diferente do que é (ambição, presunção) revela-se como uma negação e, consequentemente, como um desconhecimento de si. Cabe ao homem, em sua finitude, habitar a si mesmo.
Referências:
ARMOGATHE, JEAN-ROBERT: Pascal e o Amor-Próprio. Kriterion. Belo Horizonte, v. 47, n 114. Jul - Dez,2006. p.223-236.
MONTAGNE. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Notas:
[1] Chamamos laica em oposição a interpretação de Santo Agostinho em sua teoria dos dois amores, a de Tomás de Aquino: Tomo I, Vol. II, q. 60, bem como a interpretação da Devotio Moderna.
Ivonil Parraz
Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e Coordenador do curso de Filosofia da Faculdade João Paulo II.
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terça-feira, 20 de novembro de 2007
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4 comentários:
Parabéns.
Adorei o texto. É uma outra coisa ler um texto de filosofia, sobretudo com esse grau de profundidade.
Gostaria de salientar o tema escolhido pelo Ivonil e a forma como ele trabalhou este tema. É fantástica esta busca pela concepção primária do amor-próprio na antiguidade e sua vertente em Montaigne o autor explanou.
Parabéns.
Adorei o texto. É uma outra coisa ler um texto de filosofia, sobretudo com esse grau de profundidade.
Gostaria de salientar o tema escolhido pelo Ivonil e a forma como ele trabalhou este tema. É fantástica esta busca pela concepção primária do amor-próprio na antiguidade e sua vertente em Montaigne o autor explanou
Fabio.
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